11 de fev. de 2013

Os Contornos da Metáfora de Saramago.



      O homem, levado pelo tempo, pelo tempo veloz, não tem mais “tempo” para apreciar o “tempo”. O consumismo entrou em nossas casas, sentou-se à nossa mesa e comeu da nossa comida. A estandardização do homem, o processo de igualização e a perda do significado das coisas ofertam a roupagem da crise de identidade que atravessamos.

    José Saramago, em Ensaio sobre a Cegueira, na magnitude de quem arrebatou merecidamente o Prêmio Nobel e põe-se dentre os maiores escritores de todos os tempos, mescla literatura e sabedoria para dizer que precisamos parar, debruçar-nos sobre a vida e, paradoxalmente, fechar os olhos para ver. Como diz o Livro dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

    A obra do português é a proposta de antítese à pós-modernidade. Como afirma o próprio autor, num dos diálogos que intenta a busca da causa da cegueira: “Por que foi que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”.

     O que nos leva a cegar? As mensagens subliminares do consumismo hedonista, a imposição do pertencimento e a institucionalização do agir fazem com que as pessoas não se percebam mais e não percebam os outros. A velocidade da vida amordaça o homem e impõe o questionamento da ideia de liberdade. A patologia que acomete os personagens de Saramago não é biológica. A institucionalização da cegueira registra relação direta com a formatação do homem moderno, vítima de um processo de padronização perversa que sepulta as individualidades responsáveis pela composição do mosaico social, do qual a pluralidade é condição fundante.

    A velocidade em giga-hertz do tempo presente, a necessidade de respostas imediatas, a instantaneidade do tempo, que recebem a designação de “modernidade líquida” pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, encobriram a vida, engoliram a vida, mataram a vida... sobrou... a cegueira. Saramago propõe a reflexão do homem e o início de um caminho que resgate a lucidez perdida, o afeto vilipendiado e a passividade contemplativa. Ao mesmo tempo em que promove o tempo ao posto de contêiner de capacidade infinita, a modernidade fluída dissolve, erige uma névoa e desvaloriza seu caminhar.

     A busca do significado das coisas e a reparação do que foi abandonado, mutilado, do que já deixou de se tornar caro ao homem é uma das missões que Saramago tece em sua inebriante teia.

    Num dia trivial, defronte ao sinal de trânsito, um carro apresenta-se imóvel dentre o movimento intenso: um homem acusa estar cego, sem motivo aparente. Inicia-se o contágio do que vem a ser denominado “treva branca”. O número de pessoas contaminadas pela morbidade aumenta cada vez mais e o Estado determina a quarentena de todos, impondo um isolamento autoritário e mórbido, sem qualquer contato com o mundo externo.

      Dentre os cegos, uma mulher ainda mantém a visão biológica (já que o ato de enxergar, para Saramago, tem outras conotações, numa riqueza metafórica impressionante). Guia então os demais reclusos até que um grupo decide impor um regime tirano e grotesco, manipulando a comida enviada pelo Governo e exigindo em troca bens e serviços sexuais das mulheres. O grupo subordinado revolta-se e consegue restabelecer as forças, quando “alcança a liberdade”, deparando com um mundo destruído onde o caos impera e a cegueira vitimou a todos.

     O “reencontro” do homem consigo mesmo, representado na retomada do afeto, do respeito mútuo e da lucidez daqueles que deixam a reclusão, traduz a dura mensagem de Saramago, que lança mão da metáfora da cegueira para permitir que todos enxerguem novamente. Enxergar o quê? A vida, os outros e, em última instância, a nós mesmos.

Jeferson Dytz Marin


O artigo foi publicado originalmente no JORNAL PIONEIRO, de Caxias do Sul, no dia 08/02/2013.