O homem, levado pelo tempo, pelo tempo veloz, não tem mais “tempo” para
apreciar o “tempo”. O consumismo entrou em nossas casas, sentou-se à
nossa mesa e comeu da nossa comida. A estandardização do homem, o
processo de igualização e a perda do significado das coisas ofertam a
roupagem da crise de identidade que atravessamos.
José Saramago,
em Ensaio sobre a Cegueira, na magnitude de quem arrebatou merecidamente
o Prêmio Nobel e põe-se dentre os maiores escritores de todos os
tempos, mescla literatura e sabedoria para dizer que precisamos parar,
debruçar-nos sobre a vida e, paradoxalmente, fechar os olhos para ver.
Como diz o Livro dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver,
repara”.
A obra do português é a proposta de antítese à
pós-modernidade. Como afirma o próprio autor, num dos diálogos que
intenta a busca da causa da cegueira: “Por que foi que cegamos? Não sei,
talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que
penso? Diz. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que
veem. Cegos que, vendo, não veem”.
O que nos leva a cegar? As
mensagens subliminares do consumismo hedonista, a imposição do
pertencimento e a institucionalização do agir fazem com que as pessoas
não se percebam mais e não percebam os outros. A velocidade da vida
amordaça o homem e impõe o questionamento da ideia de liberdade. A
patologia que acomete os personagens de Saramago não é biológica. A
institucionalização da cegueira registra relação direta com a formatação
do homem moderno, vítima de um processo de padronização perversa que
sepulta as individualidades responsáveis pela composição do mosaico
social, do qual a pluralidade é condição fundante.
A velocidade
em giga-hertz do tempo presente, a necessidade de respostas imediatas, a
instantaneidade do tempo, que recebem a designação de “modernidade
líquida” pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, encobriram a vida,
engoliram a vida, mataram a vida... sobrou... a cegueira. Saramago
propõe a reflexão do homem e o início de um caminho que resgate a
lucidez perdida, o afeto vilipendiado e a passividade contemplativa. Ao
mesmo tempo em que promove o tempo ao posto de contêiner de capacidade
infinita, a modernidade fluída dissolve, erige uma névoa e desvaloriza
seu caminhar.
A busca do significado das coisas e a reparação do
que foi abandonado, mutilado, do que já deixou de se tornar caro ao
homem é uma das missões que Saramago tece em sua inebriante teia.
Num
dia trivial, defronte ao sinal de trânsito, um carro apresenta-se
imóvel dentre o movimento intenso: um homem acusa estar cego, sem motivo
aparente. Inicia-se o contágio do que vem a ser denominado “treva
branca”. O número de pessoas contaminadas pela morbidade aumenta cada
vez mais e o Estado determina a quarentena de todos, impondo um
isolamento autoritário e mórbido, sem qualquer contato com o mundo
externo.
Dentre os cegos, uma mulher ainda mantém a visão
biológica (já que o ato de enxergar, para Saramago, tem outras
conotações, numa riqueza metafórica impressionante). Guia então os
demais reclusos até que um grupo decide impor um regime tirano e
grotesco, manipulando a comida enviada pelo Governo e exigindo em troca
bens e serviços sexuais das mulheres. O grupo subordinado revolta-se e
consegue restabelecer as forças, quando “alcança a liberdade”, deparando
com um mundo destruído onde o caos impera e a cegueira vitimou a todos.
O
“reencontro” do homem consigo mesmo, representado na retomada do afeto,
do respeito mútuo e da lucidez daqueles que deixam a reclusão, traduz a
dura mensagem de Saramago, que lança mão da metáfora da cegueira para
permitir que todos enxerguem novamente. Enxergar o quê? A vida, os
outros e, em última instância, a nós mesmos.
Jeferson Dytz Marin
O artigo foi publicado originalmente no JORNAL PIONEIRO, de Caxias do Sul, no dia 08/02/2013.