27 de jan. de 2014

Colher a Vida.


Esses dias, numa dessas conversas rápidas de rua, encontrei um amigo, o Gilmar, de Cotiporã (do tupi, lugar pequeno bonito), minha terra natal. Depois de uma vida inteira prestando serviços numa empresa pública, disse-me que a aposentadoria estava chegando e iria morar em Recife. O relato pode parecer singelo e trivial, mas não é. Traduz o sentimento de muitos, que, após uma vida de esforços extremados e de sufoco provocado pela velocidade pós-moderna projetam o descanso que antecede a chegada da morte de uma forma lúdica e sonhada.

Claro que, em geral, as pessoas não têm coragem nem de viver a vida após a vida vivida. De fato, a serra gaúcha é prodigiosa em exemplos de pessoas cuja morte coincide com o fim da vida produtiva. Mas parece que a grande questão não é retardar a prova do intenso gosto da vida para a aposentadoria, mas sim viver uma vida equilibrada, à luz do crepúsculo, como se estivéssemos a iniciar a caminhada, mas cientes da possibilidade de que, ali adiante, ela termine. Viver o carpe diem  “...carpe diem, quam minimum credula postero". O legado de Horácio (Livro I - “Odes”), poeta que se foi antes mesmo de Cristo vir ao mundo, parece gerar uma importante reflexão. Aliás, vale lembrar que em “Sociedade dos Poetas Mortos” ele designava o lema da sociedade secreta movida pelo idealismo dos estudantes regidos por Mr. Keating.
 
Mas o que é, afinal, “colher o dia”? Mário Sergio Cortella tem uma contribuição que acredito ser decisiva para a compreensão do termo horaciano, que se popularizou de uma forma impressionante, justificando ações como a busca frenética por todos os tipos de drogas, práticas financeiras pródigas e insanidades firmadas num cediço adágio amoral de que os “os fins justificam os meios”. O carpe diem alcançou notoriedade no período de declínio do Império Romano, quando o Estado “moribundo tenta sorver as últimas gotas de vida”. E embora o carpe diem sugira a necessidade de “colher” o presente,  não pode significar a negação do futuro, pois ele virá, inevitavelmente. E para os que querem espelhar-se em Rubem Alves, a quem temos que “Colher o dia como um morango vermelho que cresce à beira do abismo”, ao menos, vivam como ele: “Verbo feito carne”.
 
Então, parece que o carpe diem sugere sim a mudança para Recife anunciada por meu amigo, em busca do mar e do céu azul, no sentido de que é preciso pensar no depois...todavia, não existe só o depois, mas também o hoje, o agora. Quando Cortázar escreveu “A história das invenções” sugeriu o que Bauman chamou, sociologicamente, de “modernidade líquida”. Claro, a descrição literária do argentino aguça bem mais os sentidos. Nos conta ele, num curioso caminho que inicia no presente e termina no passado, que o homem, após inventar o avião supersônico, projetou o trem e, num estágio mais “avançado”, chega à “invenção” do caminhar. Justificativa? O fato de que as viagens rápidas mortificam o contemplar da paisagem e o “sorver a vida”. Cortázar considera, ao cabo, que a maior invenção é o resgate do tempo perdido. Eis o verdadeiro carpe diem.

É preciso ir além do cinza que banha a velocidade estéril de nosso tempo. O consumo hedonista gerou um séquito de fantasmas pálidos. O cotidiano não pode ser um peso, mas uma redenção. É preciso resgatar a personalidade dos atos, das pessoas, da vida. Sim, não temos vidas iguais, nem personalidades e pretensões idênticas. Felizmente, somos diferentes. As ciências mergulham num processo de estandardização, de esteriotipação, de igualização e o homem, precípuo objeto de estudo, acaba sendo levado por essa onda. O Direito esqueceu que os processos se justificam e existem para salvaguardar interesses de “pessoas”. Vivemos a era do 0800 jurídico, pois as sentenças, as contestações e os recursos multiplicam-se como coelhos... as ações não tem mais... personalidade. O marketing inspira-se no imaginário de uma moda universal e que, exatamente por ser assim, sufoca os individualismos, as personalidades.  O homem distancia-se de si próprio e mergulha no standart, no despersonalizado, no frenesi do padrão ditado, imposto, no fato dado, no desde-já-sempre de Heidegger. Mas a vida, a vida não é um fato dado, mas um fato a ser vivido. Fato, na concepção de Sartre, de descoberta.

E para seguir a fase “Rubem Alves, “O que escrevo não é o que tenho, é o que me falta”. De fato, as pessoas pensam e refletem, em geral, sobre o que almejam e querem buscar, mas, de fato, não conseguem alcançar. É preciso, além de andar e buscar o alimento para o corpo, saciar a fome da alma. Como já disse Nietzsche: “não é possível crer num Deus que não sabe dançar”.
 
Jeferson Dytz Marin