Esses dias, numa dessas conversas
rápidas de rua, encontrei um amigo, o Gilmar, de Cotiporã (do tupi, lugar pequeno bonito), minha terra natal. Depois de uma
vida inteira prestando serviços numa empresa pública, disse-me que a aposentadoria
estava chegando e iria morar em
Recife. O relato pode parecer singelo e trivial, mas não é.
Traduz o sentimento de muitos, que, após uma vida de esforços extremados e de
sufoco provocado pela velocidade pós-moderna projetam o descanso que antecede a
chegada da morte de uma forma lúdica e sonhada.
Claro que, em geral, as pessoas
não têm coragem nem de viver a vida após a vida vivida. De fato, a serra gaúcha
é prodigiosa em exemplos de pessoas cuja morte coincide com o fim da vida
produtiva. Mas parece que a grande questão não é retardar a prova do intenso
gosto da vida para a aposentadoria, mas sim viver uma vida equilibrada, à luz
do crepúsculo, como se estivéssemos a iniciar a caminhada, mas cientes da
possibilidade de que, ali adiante, ela termine. Viver o carpe diem “...carpe diem,
quam minimum credula postero". O legado de Horácio (Livro I -
“Odes”), poeta que se foi antes mesmo de Cristo vir ao mundo, parece gerar uma
importante reflexão. Aliás, vale lembrar que em “Sociedade dos Poetas Mortos”
ele designava o lema da sociedade secreta movida pelo idealismo dos estudantes
regidos por Mr.
Keating.
Mas o que é, afinal, “colher o
dia”? Mário Sergio Cortella tem uma contribuição que acredito ser decisiva para
a compreensão do termo horaciano, que se popularizou de uma forma
impressionante, justificando ações como a busca frenética por todos os tipos de
drogas, práticas financeiras pródigas e insanidades firmadas num cediço adágio
amoral de que os “os fins justificam os meios”. O carpe diem alcançou notoriedade no período de declínio do Império
Romano, quando o Estado “moribundo tenta sorver as últimas gotas de vida”. E embora
o carpe diem sugira a necessidade de
“colher” o presente, não pode significar a negação do futuro,
pois ele virá, inevitavelmente. E para os que querem espelhar-se em Rubem Alves , a quem
temos que “Colher o dia como um morango vermelho que cresce à beira do abismo”,
ao menos, vivam como ele: “Verbo feito carne”.
Então, parece que o carpe diem sugere sim a mudança para
Recife anunciada por meu amigo, em busca do mar e do céu azul, no sentido de
que é preciso pensar no depois...todavia, não existe só o depois, mas também o
hoje, o agora. Quando Cortázar escreveu “A história das invenções” sugeriu o
que Bauman chamou, sociologicamente, de “modernidade líquida”. Claro, a
descrição literária do argentino aguça bem mais os sentidos. Nos conta ele, num
curioso caminho que inicia no presente e termina no passado, que o homem, após
inventar o avião supersônico, projetou o trem e, num estágio mais “avançado”,
chega à “invenção” do caminhar. Justificativa? O fato de que as viagens rápidas
mortificam o contemplar da paisagem e o “sorver a vida”. Cortázar considera, ao
cabo, que a maior invenção é o resgate do tempo perdido. Eis o verdadeiro carpe diem.
É preciso ir além do cinza que
banha a velocidade estéril de nosso tempo. O consumo hedonista gerou um séquito
de fantasmas pálidos. O cotidiano não pode ser um peso, mas uma redenção. É
preciso resgatar a personalidade dos atos, das pessoas, da vida. Sim, não temos
vidas iguais, nem personalidades e pretensões idênticas. Felizmente, somos
diferentes. As ciências mergulham num processo de estandardização, de
esteriotipação, de igualização e o homem, precípuo objeto de estudo, acaba
sendo levado por essa onda. O Direito esqueceu que os processos se justificam e
existem para salvaguardar interesses de “pessoas”. Vivemos a era do 0800
jurídico, pois as sentenças, as contestações e os recursos multiplicam-se como
coelhos... as ações não tem mais... personalidade. O marketing inspira-se no
imaginário de uma moda universal e que, exatamente por ser assim, sufoca os
individualismos, as personalidades. O
homem distancia-se de si próprio e mergulha no standart, no despersonalizado, no frenesi do padrão ditado,
imposto, no fato dado, no desde-já-sempre de Heidegger. Mas a vida, a vida não
é um fato dado, mas um fato a ser vivido. Fato, na concepção de Sartre, de
descoberta.
E para seguir a fase “Rubem
Alves, “O que escrevo não é o que tenho, é o que me falta”. De fato, as pessoas
pensam e refletem, em geral, sobre o que almejam e querem buscar, mas, de fato,
não conseguem alcançar. É preciso,
além de andar e buscar o alimento para o corpo, saciar a fome da alma. Como já
disse Nietzsche: “não é possível crer num Deus que não sabe dançar”.
Jeferson Dytz Marin