José Saramago. |
O homem,
levado pelo tempo, pelo tempo veloz, não tem mais “tempo” para apreciar o
“tempo”. O consumismo entrou em nossas casas, sentou-se a nossa mesa e comeu da
nossa comida. A estandartização do homem, o processo de igualização e a perda
do significado das coisas ofertam a roupagem da crise de identidade que
atravessamos.
José Saramago,
em Ensaio sobre a Cegueira, na magnitude de quem arrebatou merecidamente o Prêmio
Nobel e põe-se dentre os maiores escritores de todos os tempos, mescla
literatura e sabedoria para dizer que precisamos parar, debruçar-nos sobre a
vida e, paradoxalmente, fechar os olhos para ver. Como diz o Livro dos
Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
A obra do
português é a proposta de antítese à modernidade. O filme de Fernando Meirelles,
que recebe a designação do livro homônimo, não é só inspirado na obra do
escritor e dramaturgo, mas registra a franca e difícil pretensão de reproduzir
a história que brotou da mente e das mãos de Saramago. Como afirma o próprio
autor, num dos diálogos que intenta a busca da causa da cegueira: “Porque foi
que cegamos? Não sei, talvez um dia se cheque a conhecer a razão. Queres que te
diga o que penso? Diz. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos
que vêem. Cegos, que, vendo, não vêem”.
O que nos leva
a cegar? As mensagens subliminares do consumismo, a imposição do pertencimento
e a institucionalização do agir faz com que as pessoas não se percebam mais e
não percebam os outros. A velocidade da vida amordaça o homem e impõe o
questionamento da idéia de liberdade. A patologia que acomete os personagens de
Saramago não é biológica. A institucionalização da cegueira registra relação
direta com a formatação do homem moderno, vítima de um processo de padronização
perversa que sepulta as individualidades, responsáveis pela composição do
mosaico social, do qual a pluralidade é condição fundante.
A
velocidade em gigahertz da modernidade, a necessidade de respostas imediatas, a
instantaneidade do tempo, no que Zygmunt
Bauman chamou de modernidade líquida, encobriu a vida, engoliu a vida,
matou a vida (...) sobrou, a cegueira. Saramago propõe a reflexão do homem e o
início de um caminho que resgate a lucidez perdida, o afeto vilipendiado e a
passividade contemplativa. Ao mesmo
tempo em que promove o tempo ao posto de contêiner de capacidade infinita, a
modernidade fluída dissolve – erige uma névoa e desvaloriza sua duração.
A busca do
significado das coisas e a reparação do que foi abandonado, mutilado, do que já
deixou de se tornar caro ao homem, é uma das missões que Saramago propõe.
Num dia
trivial, defronte ao sinal de trânsito, um carro apresenta-se imóvel dentre o
movimento intenso: um homem acusa estar cego, sem motivo aparente. Inicia-se o
contágio do que vem a ser denominado “treva branca”. O número de pessoas
contaminadas pela morbidade aumenta cada vez mais e o Estado determina a
quarentena de todos, impondo um isolamento autoritário e mórbido, sem qualquer
contato com o mundo externo.
Dentre os
cegos, uma mulher ainda mantém a visão biológica (Já que o ato de enxergar,
para Saramago, tem outras conotações, numa riqueza metafórica impressionante).
Guia então os demais reclusos até que um grupo decide impor um regime tirano e
grotesco, manipulando a comida enviada pelo governo e exigindo em troca bens e
serviços sexuais das mulheres. O grupo subordinado revolta-se e consegue
restabelecer as forças, quando “alcança a liberdade”, deparando-se com um mundo
destruído onde o caos impera e a cegueira vitimou a todos.
O “reencontro” do homem consigo mesmo, representado na retomada do afeto, do respeito mútuo e da lucidez daqueles que deixam a reclusão, impõe a dura mensagem de Saramago, que lança mão da metáfora da cegueira para permitir que todos enxergassem novamente. Enxergar o quê? A vida, os outros e, em última instância, a nós mesmos.
Jeferson Dytz Marin